quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Do encantamento ao desprezo: a memória construída do indígena e o povo brasileiro





A chegada dos europeus à América, em 1492, é o marco do “encontro” entre povos nativos e os homens vindos do velho mundo. Amenizada para “descoberta”, a invasão cometida há séculos atrás, provocou uma verdadeira revolução cultural, territorial e política. Uns dos temas mais comentados pelos europeus sobre a América eram os nativos que aqui viviam. Viajantes com seus relatos despertaram muitas curiosidades nos povos de além mar. Títulos foram escritos inspirados nas histórias que se ouviam dos navegadores. Utopia, uma das obras mais influentes do século XIV, escrita pelo teólogo e humanista inglês Thomas Morus, foi uma coletânea de informações adquiridas em conversas com marinheiros irlandeses que haviam estado no Brasil. O livro indicava uma sociedade perfeita, igualitária e vivendo em plena harmonia. Era o encantamento sobre as populações nativas encontradas aqui. Michel de Montaigne, francês, também era um verdadeiro admirador dos Tupinambá. Pôde compreender a importância e o simbolismo do ritual de canibalismo praticado pelos mesmos, opondo-se aos julgamentos de que os indígenas eram “selvagens”. Rousseau, contrariando as teorias de Hobbes, escreveu que o homem é bom, a sociedade (capitalista) que o corrompe, afirmando assim que os únicos bons seriam as populações indígenas brasileiras. A dicotômica trajetória histórica do indígena ora como bom selvagem, ora como mau, perdura até os dias atuais.
Um estereótipo moldado desde o período colonial português ainda se mantêm presentes tanto na historiografia mais tradicional, como no imaginário de grande parte da população. A construção da memória histórica brasileira baseia-se em um indígena como “museu vivo”, ou seja, imutável, preso a um passado deveras distante.  Presentes apenas nos primeiros capítulos que se estudamos sobre a História do Brasil, os povos indígenas são omitidos como seres históricos que são. Pois eles são, senhores e donos de suas trajetórias históricas, pois “vivem na natureza, mas a modificam, criando novos ambientes. Agregam excedentes econômicos, criam sociedades complexas” (Gomes, 2013). Um exemplo de organização que poucos puderam compreender a fundo é o sistema de parentesco de algumas etnias.
Cada vez mais estudiosos da área indigenista encontram inúmeras evidências de eventos históricos interessantíssimos sobre as sociedades nativas americanas, reescrevendo a História Indígena mais próxima de sua realidade. Bertazoni (2013) descreve como eram as relações entre as sociedades incas e, as nem tão sistematizadas, sociedades amazônicas, pois “apesar dos conflitos (...) elas conseguiram estabelecer intercâmbios”. Episódio esse, até pouco tempo conhecido e desconhecido pela grande parte da população.
Toda a memória construída e presente até hoje sobre os povos indígenas deve ser revisada. Pois, antes da chegada dos europeus, o continente americano vivia dialeticamente e possuía uma história, como qualquer outro. Ao contrário de muitos viajantes da época em seus escritos descritivos sobre as sociedades indígenas afirmaram, só porque essas eram ágrafas não quer dizer que não davam importância ao seu passado. Ou que não tivessem uma história. Verificamos isso, ao perceber que praticamente todas as etnias têm seus mitos. Parecem fantasiosos? Mas é história. Em seus mitos, seus ritos e tudo o que podem produzir como grafismo, artesanato e até mesmo suas decisões contemporâneas, é história.
Acontece conosco não indígenas, não é mesmo? Somos identificados e afirmados como sujeitos históricos. Por que seria diferente com a população indígena? Somos possuidores, também, de memórias que não são nossas, concebidas durante os séculos, os anos que se passaram. Às vezes muitos dos fatos que consideramos como parte da nossa história nem vivenciamos, mas ela nos pertence. Estas memórias como seres sociais e históricos, nos permitem compreender nossa realidade, ter cautela ou evocar um fato passado para auxiliar em um acontecimento presente. As manifestações que tomaram o Brasil, por exemplo, foram às pessoas evocando um passado cheio de vontade de mudança, Nós jovens, não estávamos lá, mas sabíamos que poderíamos como brasileiros retomar a velha luta contra a impunidade. Essa memória coletiva advém das inúmeras memórias individuais durante toda a trajetória histórica. Inúmeros pontos de vistas formam a memória de todos, memória de uma nação.
Grande parte de nossa memória em relação às populações nativas foram fortalecidas pelos inúmeros enganos e pré-conceitos constituídos nos discursos do passado, que tomaram força pelo nosso desconhecimento sobre os mesmos. Entretanto, a memória indígena se mantém viva e continuamente florescendo para história. De suma importância, é ouvir essas vozes dissonantes, esses agentes históricos, para que nossa memória juntamente com a deles se tornem uma verdadeira memória coletiva e social. Para assim termos uma verdadeira identidade nacional. Todos nós reconhecemos o nosso pezinho na aldeia, nosso pezinho no quilombo, mas praticamente desconhecemos a realidade vivente dos brasileiros que se encontram nessa conjuntura. Uma identidade nacional vai muito além da fusão das “três raças”: branca, negra e indígena. Até porque o Brasil não se formou apenas por essas três etnias. O espírito da nação vem com o reconhecimento de nós nos outros brasileiros. Ou seja, por mais que tenhamos nossa identidade individual, nossos gostos particulares, a identidade nacional vem da assimilação de aspectos comuns que caracterizam os que compõem um Estado.
Contudo, os povos indígenas que também travaram suas lutas, foram atrás dos seus direitos e vontades, antes e depois da chegada dos portugueses, continuam compondo suas tramas históricas, ainda sofrem com a posição de subjugados e impostos a margem social. Infelizmente, há um enrijecimento no eterno pensamento sobre o indígena: o bom e o mau selvagem. Ora ele é puro, harmônico com a natureza, contra hidrelétricas e estradas em seus territórios. Ora é muito mau, pois vende madeira ilegalmente, utiliza-se da tecnologia, compra Hilux.
Acontece, que esse eterno pensamento dicotômico dificulta e muito para o reconhecimento das populações indígenas como pertencentes ao Estado brasileiro e verdadeiros cidadãos com direitos e deveres a serem cumpridos. É preciso um maior apoio e vontade de quebras os parâmetros de pensamentos tão consolidados, para que uma mudança profunda ocorra e essa memória distorcida seja modificada. Os povos indígenas, graças as suas lutas, conseguiram inúmeros reconhecimentos políticos, que por vezes não são cumpridos pelo seu desconhecimento social. Uma sociedade despreparada, quase sempre, comete muitos erros e esses erros sempre caem sobre a minoria subjugada da população.
 


Referências
BERTOZINI, Cristiana. A cordilheira e a Floresta. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, nº 91, pgs. 24-26, Abril de 2013.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1976. p. 33-52.
GOMES, Mércio Pereira. Bom selvagem, mau selvagem. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, nº 91, pgs. 33-35, Abril de 2013.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1990. p. 71-111.
SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um Olhar sobre a Presença das Populações Nativas na Invenção do Brasil. In: SILVA, Aracy Lopez da & GRUPIONI, Luiz Donisetti Benzi (Orgs.). A Questão Indígena na Sala de Aula. Novos Subsídios para Professores de 1º e 2º Graus. 1 ed. Brasília: Mec, 1995. p. 407-419.



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O índigena nos livros didáticos e outras considerações




            Quando penso como aprendi sobre o que era o “índio”, me recordo de fazer colar de macarrão, um cocar com recortes de papel A4 e cantar aquela velha canção dos indiozinhos no bote – passados 20 anos, essa mesma metodologia de ensino prevalece. Se houve um conhecimento mais aprofundado sobre os povos indígenas na minha época de ensino básico, foi através dos inúmeros títulos que minha mãe, uma devoradora de livros, me presenteava. Tinha um apego singular pela literatura de temática indígena. Um dos meus livros preferidos é Cem noites tapuias, apesar do “inimigo” ser os Xavante que raptavam pessoas, havia muito mais ali do que em qualquer ensinamento que eu dispunha em sala de aula.
            Um indígena genérico - que adora Tupã, constrói canoas, vive em oca, “selvagens”, “rudimentar” - é a imagem que sempre foi transmitida dentro e fora da escola. Evidencia-se com episódios, como “Juca Pirama” do Sítio do Pica Pau Amarelo e nas campanhas publicitárias. Pouco se analisa a vida dos povos indígenas, reproduzindo e promovendo sempre um mesmo estereótipo erroneamente (Coelho, 2007). O que é lamentável nisso tudo é a contribuição para estatizar a história do indígena e até mesmo promover o preconceito que há muito já deveria ter sido abolido.
            Analisar o papel que o indígena possui na história e nos livros didáticos é decepcionar-se com a realidade. O indígena pouco aparece na história do Brasil, pra se ter uma ideia. Consta com sua presença, de modo geral, no capítulo sobre a Pré História e depois só aparece quando se trata da colonização do Brasil, Império e no início da República – quando se analisa o nascimento do Brasil a partir das três “raças”: indígena, negra e portuguesa. De repente, o indígena some! Não se menciona coisa alguma a mais sobre eles.
Essa presença quase que discreta dos povos indígenas nos materiais didáticos e na própria história justifica-se pela historiografia adotada: privilegiando as grandes potências e ignorando a dinâmica própria do continente americano (Grupioni, 1996). Considerando que antes da “invasão” portuguesa, existiam aqui, em terras brasileiras, inúmeras nações com seus processos e agentes históricos, é necessário compreender a importância de resgatá-los e reconhecer que essas tramas históricas também fazem parte e são verdadeiros instrumentos para a compreensão histórica sobre nosso país e nossa própria identidade nacional. Entretanto, o marco inicial para os estudos da história do continente americano é a chegada dos europeus. Eles, por sua vez, são os protagonistas dos livros didáticos e tudo se desenvolve a partir deles.
Como dito anteriormente e feita a análise em alguns livros didáticos, fala-se sobre os nativos americanos de forma superficial, dá-se mais atenção aos grandes impérios da América Espanhola, ignorando as nações de organizações tribais (Petta, 2005). Este entendimento deve-se pelo fato de classificar o desenvolvimento das nações – os Incas, os Maias e os Astecas, por sua vez, seriam mais “desenvolvidos” que os outros povos. De todo o modo, a historiografia e a antropologia vêm desmistificando esse pensamento de escala evolucionista adotada durante séculos, compreendendo assim as particularidades dos diferentes sistemas culturais, desviando o olhar sempre tão etnocêntrico, aproximando-se de um ponto de vista mais pluricultural. A Academia desenvolve cada vez mais estudos pautados por essa ótica, o que falta agora são os livros da educação básica começarem a adotar essa perspectiva.
Para estabelecer a obrigatoriedade do ensino da História Indígena nas escolas, o governo sancionou a lei número 11.645/08, alterando a lei 10.639/03 que estabelecia apenas o ensino da História Afro-Brasileira. Juntas, modificaram a lei 9.394 que regulamenta as diretrizes e bases da educação nacional. A legislação diz que as histórias africanas e indígenas devem ser ministradas no âmbito de todo o currículo escolar. Acontece que aí temos um problema a ser analisado: o despreparo dos nossos profissionais da educação. Analisar a História Indígena compreende muito mais do que fazer alguma comemoração genérica no dia 19 de abril.
É preciso questionar principalmente os livros didáticos e o modo como o papel do indígena aparece. A construção simplificadora e estereotipada que a historiografia tradicional e os livros da educação básica reproduzem (Souza Lima, 1995) necessita ser revisada. Papel fundamental do educador que lida todos os dias com o material didático é questioná-lo e além, publicar esses questionamentos, dar voz a esse descaso.
O material didático deve ser urgentemente analisado, questionado e ter suas mudanças de acordo com as leis regulamentadoras do ensino. Por quê? Qualquer educador sabe que na maioria das vezes, a única leitura que o aluno propõe-se a ler é a do livro didático. Muitas vezes alheio ao que o professor fala em sala de aula, só estuda para a prova através do próprio livro didático. E o mesmo deve garantir o encontro do discente com a própria história, formar um cidadão crítico, pensante, que sabe analisar que não é só o vencedor que faz a história, que todos os povos são produtores e, principalmente, agentes históricos, entender o presente, refletir sobre a atual conjectura nacional e o universo que se é inserido.
Infelizmente, o estudo da História por muitas vezes não é interessante para o aluno por ser muito fora de sua realidade. A maneira como se é ministrada a matéria em sala de aula, a maneira como é feita a leitura da história nos materiais didáticos é deveras maçante. Até pra mim, historiadora e louca por histórias. Paulo Freire já dizia, qualquer que seja a matéria ministrada é necessário inseri-la na realidade do aluno e não o contrário.
De todo modo, com o estabelecimento da lei 11.645, a tendência é melhorar cada vez mais os materiais didáticos e produções mais reflexivas sobre o povo brasileiro.
Mas por enquanto, o que pode-se notar é a ausência de reflexão sobre os povos indígenas antes, durante e após o período português em terras brasileiras. “De acordo com Ronaldo Vainfas, a história indígena é uma história de enganos e incompreensões” (Ferreira, 2005): uma história de ausências. Lacunas históricas que devem ser preenchidas.
Refletir sobre a criação de cada um dos órgãos responsáveis pelos indígenas, a história indígena em si, desde a época da escravidão até os dias atuais, nos leva a questionar temas como: território indígena, autonomia indígena, saúde e educação indígena. Esse descaso pelas comunidades tradicionais reflete e muito na história delas. São brasileiros como nós, mas sempre subjugados e impostos a margem da sociedade. Se os próprios brasileiros não se importam com seus “irmãos”, poderia o governo importar? Visto que o Estado somos nós e nós o construímos. E é papel fundamental formar logo na base, a consciência crítica e política dos futuros cidadãos. A importância de discutir a temática indígena em sala de aula está aí: na formação de cidadãos e políticos conscientes do que é justo.



Referências:
COELHO, Mauro Cezar. As Populações Indígenas no Livro Didático, ou A Construção de um Agente Histórico Ausente. GT: Educação Fundamental / n.13.

GOMES, Mércio Pereira. Os Índios e o Brasil. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

GRUPIONI, Luis Donizete Benzi. Imagens Contraditórias e Fragmentadas: sobre o Lugar dos índios nos Livros Didáticos. In: R. bras. Est. pedag.. Brasília, v. 77, n. l86, p. 409-437, maio/ago. 1996.

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1998.

PETTA, Nicolina Luiza de. História: Uma abordagem integrada. Volume único. 1ª ed. São Paulo: Moderna, 2005.

ROCHA, Everardo. Pensando em Partir. In: O que é etnocentrismo. São Paulo, Brasiliense, 1980

SILVA, Leonardo Soares Quirino da. Abolição da Escravidão Indígena: 1680 ou 1755? Disponível em: < http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/0036.html> Acesso em: 08/08/2013.

SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um Olhar sobre a Presença das Populações Nativas na Invenção do Brasil. In: SILVA, Aracy Lopez da & GRUPIONI, Luiz Donisetti Benzi (Orgs.). A Questão Indígena na Sala de Aula. Novos Subsídios para Professores de 1º e 2º Graus. 1 ed. Brasília: Mec, 1995. p. 407-419.