A
chegada dos europeus à América, em 1492, é o marco do “encontro” entre povos
nativos e os homens vindos do velho mundo. Amenizada para “descoberta”, a
invasão cometida há séculos atrás, provocou uma verdadeira revolução cultural,
territorial e política. Uns dos temas mais comentados pelos europeus sobre a
América eram os nativos que aqui viviam. Viajantes com seus relatos despertaram
muitas curiosidades nos povos de além mar. Títulos foram escritos inspirados
nas histórias que se ouviam dos navegadores. Utopia, uma das obras mais
influentes do século XIV, escrita pelo teólogo e humanista inglês Thomas Morus,
foi uma coletânea de informações adquiridas em conversas com marinheiros
irlandeses que haviam estado no Brasil. O livro indicava uma sociedade
perfeita, igualitária e vivendo em plena harmonia. Era o encantamento sobre as
populações nativas encontradas aqui. Michel de Montaigne, francês, também era
um verdadeiro admirador dos Tupinambá. Pôde compreender a importância e o
simbolismo do ritual de canibalismo praticado pelos mesmos, opondo-se aos
julgamentos de que os indígenas eram “selvagens”. Rousseau, contrariando as teorias
de Hobbes, escreveu que o homem é bom, a sociedade (capitalista) que o
corrompe, afirmando assim que os únicos bons seriam as populações indígenas
brasileiras. A dicotômica trajetória histórica do indígena ora como bom
selvagem, ora como mau, perdura até os dias atuais.
Um
estereótipo moldado desde o período colonial português ainda se mantêm
presentes tanto na historiografia mais tradicional, como no imaginário de
grande parte da população. A construção da memória histórica brasileira
baseia-se em um indígena como “museu vivo”, ou seja, imutável, preso a um
passado deveras distante. Presentes
apenas nos primeiros capítulos que se estudamos sobre a História do Brasil, os
povos indígenas são omitidos como seres históricos que são. Pois eles são,
senhores e donos de suas trajetórias históricas, pois “vivem na natureza, mas a
modificam, criando novos ambientes. Agregam excedentes econômicos, criam sociedades
complexas” (Gomes, 2013). Um exemplo de organização que poucos puderam
compreender a fundo é o sistema de parentesco de algumas etnias.
Cada
vez mais estudiosos da área indigenista encontram inúmeras evidências de
eventos históricos interessantíssimos sobre as sociedades nativas americanas,
reescrevendo a História Indígena mais próxima de sua realidade. Bertazoni
(2013) descreve como eram as relações entre as sociedades incas e, as nem tão
sistematizadas, sociedades amazônicas, pois “apesar dos conflitos (...) elas
conseguiram estabelecer intercâmbios”. Episódio esse, até pouco tempo conhecido
e desconhecido pela grande parte da população.
Toda
a memória construída e presente até hoje sobre os povos indígenas deve ser
revisada. Pois, antes da chegada dos europeus, o continente americano vivia
dialeticamente e possuía uma história, como qualquer outro. Ao contrário de
muitos viajantes da época em seus escritos descritivos sobre as sociedades
indígenas afirmaram, só porque essas eram ágrafas não quer dizer que não davam
importância ao seu passado. Ou que não tivessem uma história. Verificamos isso,
ao perceber que praticamente todas as etnias têm seus mitos. Parecem
fantasiosos? Mas é história. Em seus mitos, seus ritos e tudo o que podem
produzir como grafismo, artesanato e até mesmo suas decisões contemporâneas, é
história.
Acontece
conosco não indígenas, não é mesmo? Somos identificados e afirmados como
sujeitos históricos. Por que seria diferente com a população indígena? Somos
possuidores, também, de memórias que não são nossas, concebidas durante os
séculos, os anos que se passaram. Às vezes muitos dos fatos que consideramos
como parte da nossa história nem vivenciamos, mas ela nos pertence. Estas
memórias como seres sociais e históricos, nos permitem compreender nossa
realidade, ter cautela ou evocar um fato passado para auxiliar em um acontecimento
presente. As manifestações que tomaram o Brasil, por exemplo, foram às pessoas
evocando um passado cheio de vontade de mudança, Nós jovens, não estávamos lá,
mas sabíamos que poderíamos como brasileiros retomar a velha luta contra a
impunidade. Essa memória coletiva advém das inúmeras memórias individuais
durante toda a trajetória histórica. Inúmeros pontos de vistas formam a memória
de todos, memória de uma nação.
Grande
parte de nossa memória em relação às populações nativas foram fortalecidas
pelos inúmeros enganos e pré-conceitos constituídos nos discursos do passado,
que tomaram força pelo nosso desconhecimento sobre os mesmos. Entretanto, a
memória indígena se mantém viva e continuamente florescendo para história. De
suma importância, é ouvir essas vozes dissonantes, esses agentes históricos,
para que nossa memória juntamente com a deles se tornem uma verdadeira memória
coletiva e social. Para assim termos uma verdadeira identidade nacional. Todos
nós reconhecemos o nosso pezinho na
aldeia, nosso pezinho no quilombo,
mas praticamente desconhecemos a realidade vivente dos brasileiros que se
encontram nessa conjuntura. Uma identidade nacional vai muito além da fusão das
“três raças”: branca, negra e indígena. Até porque o Brasil não se formou
apenas por essas três etnias. O espírito da nação vem com o reconhecimento de
nós nos outros brasileiros. Ou seja, por mais que tenhamos nossa identidade
individual, nossos gostos particulares, a identidade nacional vem da
assimilação de aspectos comuns que caracterizam os que compõem um Estado.
Contudo,
os povos indígenas que também travaram suas lutas, foram atrás dos seus direitos
e vontades, antes e depois da chegada dos portugueses, continuam compondo suas
tramas históricas, ainda sofrem com a posição de subjugados e impostos a margem
social. Infelizmente, há um enrijecimento no eterno pensamento sobre o
indígena: o bom e o mau selvagem. Ora ele é puro, harmônico com a natureza,
contra hidrelétricas e estradas em seus territórios. Ora é muito mau, pois
vende madeira ilegalmente, utiliza-se da tecnologia, compra Hilux.
Acontece,
que esse eterno pensamento dicotômico dificulta e muito para o reconhecimento das
populações indígenas como pertencentes ao Estado brasileiro e verdadeiros
cidadãos com direitos e deveres a serem cumpridos. É preciso um maior apoio e
vontade de quebras os parâmetros de pensamentos tão consolidados, para que uma
mudança profunda ocorra e essa memória distorcida seja modificada. Os povos
indígenas, graças as suas lutas, conseguiram inúmeros reconhecimentos
políticos, que por vezes não são cumpridos pelo seu desconhecimento social. Uma
sociedade despreparada, quase sempre, comete muitos erros e esses erros sempre caem
sobre a minoria subjugada da população.
Referências
BERTOZINI,
Cristiana. A cordilheira e a Floresta.
Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, nº 91, pgs. 24-26,
Abril de 2013.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, Etnia e Estrutura Social.
São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1976. p. 33-52.
GOMES,
Mércio Pereira. Bom selvagem, mau
selvagem. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, nº 91,
pgs. 33-35, Abril de 2013.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1990. p.
71-111.
SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um
Olhar sobre a Presença das Populações Nativas na Invenção do Brasil. In:
SILVA, Aracy Lopez da & GRUPIONI, Luiz Donisetti Benzi (Orgs.). A Questão Indígena na Sala de Aula. Novos
Subsídios para Professores de 1º e 2º Graus. 1 ed. Brasília: Mec, 1995. p.
407-419.