Geertz (1978) já se dedicava a entender a conciliação da
unidade biológica humana e a grande diversidade cultural da espécie humana.
Laraia (2009) discorre que desde antes de Cristo as pessoas já percebiam e
tentavam compreender como eram diferentes e particulares os diversos povos
espalhados pelo mundo afora. Viveiros Campos (1996) em seu ensaio sobre o
Perspectivismo e Multinaturalismo dos ameríndios da amazônia, não tenta se não
alcançar a cosmovisão destes povos tão diacrítica da branca ocidental. Esta
percepção da Multiculturalidade humana, ou seja, temos uma só natureza,
determinada biologicamente e nos dividimos em várias culturas, é uma tarefa
simples. Nas sociedades modernas, não-indígenas concebemos o conhecimento do
multiculturalismo, mas conceber o conhecimento da não dissociação
Natureza-Cultura nos parece intrigante e
por vezes impossível, entretanto acontece nas sociedades indígenas, pré
modernas e atuais.
O autor da pesquisa, contando com
um extensa bibliografia de diversos teóricos e estudiosos da área, nos discursa
sobre a profundidade e a complexidade da cosmologia na América Indígena. Para
alcançar esse entendimento, primeiramente, é preciso despir-se de toda “ocidentalidade”
que nos orienta e embarcar num tão intímo e, porque não dizer, misterioso modo
de ver e compreender a vida e tudo que a rodeia.
Academicamente falando a
cosmovisão indígena recebe um nome. A “qualidade perspectiva” ou “relatividade
perspectiva” não é simplesmente um fato ou um objeto cultural a ser nomeado.
Para o indígena é como o mundo funciona. O mundo é. O mundo e todos os seres
que o habitam e que habitam os outros mundos tem uma alma e essa alma é
essencialmente humana. A essência é a mesma, é humana, os corpos que variam. E
mesmo assim, há uma rede de co-relações e relações entre todos os seres,
humanos e não-humanos. Para resumir esse pensamento quase filosófico,
poderíamos dizer em uma afirmativa que “há
sempre uma animalidade implicita no ser humano e há sempre uma humanidade
implicita no animal” (Machado, 2013).
Pois bem, o indígena não separa a
Natureza da Cultura e todos os seres possuem sentimentos, vontades, crenças e
rituais. Ou seja, toda a Natureza vive sua Cultura, seja ela gente, seja ela
animal ou, até mesmo, seja ela espiritual. Todos os seres possuem sua cosmovisão,
tem capacidade de atribuir símbolos e significados, tem seus rituais.
Um grande exemplo simbólico é a
caça, tanto para os humanos e não humanos ela é valorizadíssima em suas
cosmovisões. Da mesma forma que o caçador vê sua caça como presa, a sua caça
também o vê desta forma. Neste momento, o que se dá não é a subjugação de um
animal por um homem, mas um conflito sujeito-sujeito em que ambos tem de lutar
por suas vidas. Entretanto, por mais que essa “guerra” seja permanente, não é
imprudente a ponto de se caçar além do necessário. Isso seria injustificável. A
caça tem símbolos e significados compatíveis com o pensamento indígena de estar
em sintonia com a natureza (pode-se entender espíritos da natureza).
O mundo indígena, de fato,
contraria todas as assertivas de White (1972), em que nos confirma que o homem
somente é o único animal que possui a inteligência de produzir e viver em um
universo simbólico. No entanto, na cosmovisão multinaturalista indígena “os
animais utilizam as mesmas categorias e valores que os humanos” (p.239), o que
muda é o ponto de vista, o perspectivismo.
Mas todo esse conhecimento e
aptidão para perceber o mundo com este formato surge de onde? Como todas as
construções culturais, os indígenas possuem mitos e crenças que antecedem a
criação do mundo. E vão além. Em todos eles, todos os seres humanos e
não-humanos estão presentes, se relacionando. Há também os mitos que contam
como os animais foram perdendo os atributos humanos e como os “mundos” se
dividiram, pelo menos a um primeiro momento. Porque mesmo em “mundos”
diferentes, há quem possa fazer a grande conexão entre eles, a partir daí entra
um personagem importantíssimo nas crenças ameríndias: o pajé ou xamã.
São eles, pajés ou xamãs, que
através de seus dons e rituais, irão continuar este contato direto com todas as
outras almas de todos os mundos. Yamã (2004) em sua pesquisa sobre a sabedoria
da religião antiga dos Mawês, a Urutópiãg, demonstra e nos preenche com um
vasto acervo de muitas das crenças desses povos. Podemos perceber o
relacionamento intenso entre as pessoas e os seres espirituais, sejam eles em
forma de espírito ou em forma de bicho. A dinâmica da transformação e
metamorfose está presente em todos os mitos, desde a criação do mundo aos
rituais da pajelança. Essa sabedoria religiosa Mawê não difere dos outros
povos. A metamorfose, a transformação do bicho em gente, de gente em espírito,
espírito em bicho ou gente, é imprescindível pra compreensão de mundo indígena.
Outro ponto considerável abordado
por Viveiros de Castro é o Etnocentrismo. Tal conceito em qualquer grupo
cultural existe, mesmo que ele não seja formulado expressamente. Portanto, não
seria diferente entre as populações indígenas sulamericanas. Só pelo fato de em
suas autodenominações constarem adjetivos como “gente de verdade”, já demonstra
uma notável superioridade em relação a outras etnias.
Referências Bibliográficas
CASTRO, Eduardo
Viveiros de. Perspectivismo e
Multinaturalismo na América Indígena. Mana, Rio de Janeiro.v.2n.2. p.225-254, 1996.
GEERTZ, Cliford e GEERTZ,
Hildred. Kinship in Bali. Chicago: University of Chicago Press. p.33
LARAIA, Roque de
Barros. Cultura: um conceito
antropológico. 24ª ed. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 2009. p.10-16.
WHITE, Leslie A. O conceito de Cultura. Rio de Janeiro.
Contraponto, 2009.
Muito interessante pensar e discutir a formas de estar no mundo na perspectiva dos povos de tradição pois ao concebermos a natureza com espirito talvez passemos a respeitá-la melhor.
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