terça-feira, 11 de junho de 2013

A cosmovisão indígena.


Geertz (1978) já  se dedicava a entender a conciliação da unidade biológica humana e a grande diversidade cultural da espécie humana. Laraia (2009) discorre que desde antes de Cristo as pessoas já percebiam e tentavam compreender como eram diferentes e particulares os diversos povos espalhados pelo mundo afora. Viveiros Campos (1996) em seu ensaio sobre o Perspectivismo e Multinaturalismo dos ameríndios da amazônia, não tenta se não alcançar a cosmovisão destes povos tão diacrítica da branca ocidental. Esta percepção da Multiculturalidade humana, ou seja, temos uma só natureza, determinada biologicamente e nos dividimos em várias culturas, é uma tarefa simples. Nas sociedades modernas, não-indígenas concebemos o conhecimento do multiculturalismo, mas conceber o conhecimento da não dissociação Natureza-Cultura nos parece  intrigante e por vezes impossível, entretanto acontece nas sociedades indígenas, pré modernas e atuais.
 
O autor da pesquisa, contando com um extensa bibliografia de diversos teóricos e estudiosos da área, nos discursa sobre a profundidade e a complexidade da cosmologia na América Indígena. Para alcançar esse entendimento, primeiramente, é preciso despir-se de toda “ocidentalidade” que nos orienta e embarcar num tão intímo e, porque não dizer, misterioso modo de ver e compreender a vida e tudo que a rodeia.

Academicamente falando a cosmovisão indígena recebe um nome. A “qualidade perspectiva” ou “relatividade perspectiva” não é simplesmente um fato ou um objeto cultural a ser nomeado. Para o indígena é como o mundo funciona. O mundo é. O mundo e todos os seres que o habitam e que habitam os outros mundos tem uma alma e essa alma é essencialmente humana. A essência é a mesma, é humana, os corpos que variam. E mesmo assim, há uma rede de co-relações e relações entre todos os seres, humanos e não-humanos. Para resumir esse pensamento quase filosófico, poderíamos dizer em uma afirmativa que “há sempre uma animalidade implicita no ser humano e há sempre uma humanidade implicita no animal” (Machado, 2013).

Pois bem, o indígena não separa a Natureza da Cultura e todos os seres possuem sentimentos, vontades, crenças e rituais. Ou seja, toda a Natureza vive sua Cultura, seja ela gente, seja ela animal ou, até mesmo, seja ela espiritual. Todos os seres possuem sua cosmovisão, tem capacidade de atribuir símbolos e significados, tem seus rituais.

Um grande exemplo simbólico é a caça, tanto para os humanos e não humanos ela é valorizadíssima em suas cosmovisões. Da mesma forma que o caçador vê sua caça como presa, a sua caça também o vê desta forma. Neste momento, o que se dá não é a subjugação de um animal por um homem, mas um conflito sujeito-sujeito em que ambos tem de lutar por suas vidas. Entretanto, por mais que essa “guerra” seja permanente, não é imprudente a ponto de se caçar além do necessário. Isso seria injustificável. A caça tem símbolos e significados compatíveis com o pensamento indígena de estar em sintonia com a natureza (pode-se entender espíritos da natureza).

O mundo indígena, de fato, contraria todas as assertivas de White (1972), em que nos confirma que o homem somente é o único animal que possui a inteligência de produzir e viver em um universo simbólico. No entanto, na cosmovisão multinaturalista indígena “os animais utilizam as mesmas categorias e valores que os humanos” (p.239), o que muda é o ponto de vista, o perspectivismo.

Mas todo esse conhecimento e aptidão para perceber o mundo com este formato surge de onde? Como todas as construções culturais, os indígenas possuem mitos e crenças que antecedem a criação do mundo. E vão além. Em todos eles, todos os seres humanos e não-humanos estão presentes, se relacionando. Há também os mitos que contam como os animais foram perdendo os atributos humanos e como os “mundos” se dividiram, pelo menos a um primeiro momento. Porque mesmo em “mundos” diferentes, há quem possa fazer a grande conexão entre eles, a partir daí entra um personagem importantíssimo nas crenças ameríndias: o pajé ou xamã.

São eles, pajés ou xamãs, que através de seus dons e rituais, irão continuar este contato direto com todas as outras almas de todos os mundos. Yamã (2004) em sua pesquisa sobre a sabedoria da religião antiga dos Mawês, a Urutópiãg, demonstra e nos preenche com um vasto acervo de muitas das crenças desses povos. Podemos perceber o relacionamento intenso entre as pessoas e os seres espirituais, sejam eles em forma de espírito ou em forma de bicho. A dinâmica da transformação e metamorfose está presente em todos os mitos, desde a criação do mundo aos rituais da pajelança. Essa sabedoria religiosa Mawê não difere dos outros povos. A metamorfose, a transformação do bicho em gente, de gente em espírito, espírito em bicho ou gente, é imprescindível pra compreensão de mundo indígena.
 
          Outro ponto considerável abordado por Viveiros de Castro é o Etnocentrismo. Tal conceito em qualquer grupo cultural existe, mesmo que ele não seja formulado expressamente. Portanto, não seria diferente entre as populações indígenas sulamericanas. Só pelo fato de em suas autodenominações constarem adjetivos como “gente de verdade”, já demonstra uma notável superioridade em relação a outras etnias. 

 Contudo o autor nos alerta que o termo certo para tal pensamento, no caso indígena, não seria o Etnocentrismo, mas se não o Cosmocêntrismo. Para ilustrar tal proposição ele se utiliza de uma anedota transcrita por Lévi-Strauss em que, enquanto o europeu tentava entender se o indígena tinha alma, o indígena o afogava e esperava que o corpo putrefasse para saber se o espírito tinha corpo. Enfim, essa visão sociocósmica, estende o espírito a muitos seres, mesmo os que não tem um corpo físico, facilitando assim uma compreensão de mundo muito mais simples e saudável. Onde natureza e cultura podem viver simultaneamente sem prejudicar um ao outro, melhor refletindo, sem que o ser humano destrua a natureza. Apesar de que é a Humanidade o fundamento natural, significativo e prestigioso de todas as coisas e seres, “a condição comum aos humanos e animais é a humanidade (...) (é a) forma geral do sujeito”(p.237).

 Para concluir, poderíamos dizer que compreender a cosmovisão do outro deve ser sempre uma tarefa livre de prejulgamentos e hostilidades. O universo cultural que ronda cada povo, cada nação, cada etnia, deve ser visto com todo respeito e a certeza de que o mundo é bem maior, mais complexo e porque não dizer, muito mais lindo com todas essas particularidades. E que todo contato “hibridizante” transformador deveria provocar uma forma cultural ainda mais bela. Uma troca de saberes para melhorar cada vez mais o próprio mundo, diferente do que outrora e ainda hoje, infelizmente, acontece.

 

Referências Bibliográficas

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena. Mana, Rio de Janeiro.v.2n.2. p.225-254, 1996.

GEERTZ, Cliford e GEERTZ, Hildred. Kinship in Bali. Chicago: University of Chicago Press. p.33

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 24ª ed. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 2009. p.10-16.

WHITE, Leslie A. O conceito de Cultura. Rio de Janeiro. Contraponto, 2009.

Um comentário:

  1. Muito interessante pensar e discutir a formas de estar no mundo na perspectiva dos povos de tradição pois ao concebermos a natureza com espirito talvez passemos a respeitá-la melhor.

    ResponderExcluir